[MOLEQUE, falado]
Uai, cê tá rimâno toda hora!
[GONÇALO, declamado]
Eu tô rimâno sim…
Mas é rima de lembramento
Rima que um dia eu fiz
Buscâno no pensamento
Os versos de quando era feliz
[MOLEQUE, falado]
Hein?
[GONÇALO, declamado]
De quando ainda tinha ela
E podia gritá na janela:
Abigail! Abigail! Ah… Bigail!
E ela surgia fresquinha
Pois tinha saído agora do banho
Os cabelo ainda moiádo
Os zóio de cima me oiâno
E eu falava: tô aqui
Ela dizia:
[ABIGAIL, falado]
Sobe já
[GONÇALO, declamado]
Ela só me fazia rí
Eu fazia ela chorá
[MOLEQUE, falado]
Por quê?
[GONÇALO, declamado]
É por causa dos versos que escrevia
Por que pensâno nela saía
Umas coisa que eu sei nem expricá
Parece que o finar das palavra mudava
Só pra módi podê rimá
Os versos tudo se encurtava
Pra na métrica encaixá
— É... como era? Ah!
“Abigail, minha namorada
Não é santa, mas venerada
Não é princesa, mas que beleza
Não é rainha, mas é só minha
Não é abêia, mas tem ferrão
Não é cupida, mas escolhida
Que é pra morá no meu coração
Abigail, se ocê fosse uma estrela
Eu desejava pr’ocê cair
Que nem estrela cadente
Pra módi junto e eternamente
Nóis dois podê sorrir”
[MOLEQUE, falado]
Ara, é bonito por demais!
[GONÇALO, declamado]
Era o que ela falava!
E depois dizia anssim:
[ABIGAIL, falado]
Que vergonha!
[GONÇALO, declamado]
Vergonha? Larga esse trem
Quem vive com ele não sonha
Nem há de amá tamém
[ABIGAIL, declamado]
Tá bom, Gonçalo, meu desejo
Agora me dê cá um bêjo
Com gosto de pão de quêjo
Que só ocê sabe me dá?
[GONÇALO, declamado]
Craro que dou, minha namorada
Bêjo essa boca rosada
Pelo Pai Cristo desenhada
Mas só se depois bem baixinho
No pé do meu ouvidinho
Ocê falá umas goiabada…
[MOLEQUE, falado]
Eca!
[GONÇALO, falado]
Ow!
Queria eu, queria ela
Juntá, casá, tê fio banguela
Mas, Abigail, carma que é cedo
Antes vou te contá um segredo
Nesse mundo tem muito mais
Eu vou sair vê o que os vento traz
Eu vou sê um poeta grande, enorme
Quase que não vai dá pra me vê
Vou mostrá meus versos pro mundo
Os versos que fala d’ocê
[ABIGAIL, declamado]
Mai pra quê, Gonçalo?
Fica comigo!
Pra quê querê morá no mundo
Se meu peito ofereceu abrigo?
[GONÇALO, declamado]
Abigail, me perdoa
Mas a viáge vai ser boa
Eu vou ser um poeta grande, enorme
Quase não vai dá pra me vê
Vou mostrá meus versos pro mundo
Ninguém mais vai me esquecê!
[MOLEQUE, falado]
Cê foi embora?
[GONÇALO, declamado]
Fui andâno, falâno dela
De porta em porta, buraco e janela
Mostrâno que o meu trabáio era bonito
Só porque falava dela
E aí passou dia, mêis e inté ano
O tempo, jumento, escorreu
Só fêiz descaminho e desengano
Eu rodei o país intêro
Tava na hora de vortá
Coração tava facêro
Porque finarmente outra vêiz podê gritá:
Abigail! Abigail! Abigail!
E ela surgiu fresquinha
Tinha saído agora do banho
Os cabelo ainda moiádo
Mas os zóio, os zóio oiáva estranho
Abigail, eu fui pro mundo
Rabiscâno a nossa história
Só que ninguém parou pra lê
[ABIGAIL, declamado]
Querido, descurpa a memória
Quem é mémo ocê?
[MOLEQUE, falado]
Eita!
[GONÇALO, declamado]
Não é à toa que pra esquecimento
A gente usa o verbo caí
É que nem tombo que dá no cimento
Rala os juêio e tem arguém ainda ri
Poeta na vida tem duas função:
Derramá lágrima e conquistá coração
Coração já era página virada
Só me sobrou tentá lucrá
Com poesia engarrafada